Salve, pessoal!
Comentei de passagem algum tempo atrás que fiz uma iniciação científica sobre a localização do Final Fantasy VI para os EUA, o original em japonês e as traduções feitas por fãs. Finalmente vou postar algo aqui.
Sempre tive vontade de estudar academicamente algo relacionado a videogame, e sempre admirei muito o trabalho das equipes ROMHackers de tradução, tanto pela generosidade quanto por abrir as portas especialmente dos RPGs japoneses que nunca foram traduzidos para o português, muitos sequer para o inglês, como é o caso do Rudra no Hihou que estamos jogando no Clube da Jogatina RPG (unicamente graças aos membros da equipe Aeon Genesis que traduziram e distribuíram o patch gratuitamente!). Daí calhou de eu estar trabalhando como tradutor e participando de um grupo de estudos de tradução de literatura japonesa, e caiu a ficha que era o momento.
A ideia no início era meio difusa, eu tinha em mente apenas que jamais havia cruzado com quaisquer menções a localização, nem a traduções de textos de jogos de videogame nos Estudos da Tradução e sentia falta disso, além de querer subsidiar e estudar de alguma maneira essas pessoas que tinham a minha admiração.
Finalmente, selecionei o Final Fantasy VI porque me lembrava de altas discussões, dos comentários sobre o Son of a Submariner, dos apagamentos culturais, etc.
Foi uma pesquisa muito prazeirosa, obviamente, mas bem trabalhosa. Algo que me deu muito trabalho foi coletar os scripts das três versões que resolvi comparar: Final Fantasy VI (em japonês), FFIII (em inglês) e a versão do Sandman para o português baseada na versão em inglês. Os dois primeiros scripts eu encontrei na internet, já o do Sandman, não encontrei.
Como eu queria fazer uma planilha com todas as falas dos "cenários" (as "animações"), com o texto de cada versão do corpus em uma coluna, precisaria dos três textos, então fui obrigado a extrair eu mesmo o texto em português do Sandman, cru, depois tive que limpar e organizar tudo na planilha. Um trabalhão.
A metodologia prevista era selecionar pontos polêmicos em termos de tradução, como o famoso "Son of a submariner" do Kefka, traduzir direto do japonês para o português, comparar com as versões do corpus e analisar. Infelizmente, minha ideia falhou porque eu não encontrei um grande número de polêmicas tradutórias como imaginava que encontraria facilmente na internet, então tive que mudar a estratégia.
Foi então que decidi de uma vez por todas montar a planilha até o fim e pinçar eu mesmo as polêmicas, da minha experiência de jogo. Diga-se de passagem, joguei as três versões simultaneamente, tentando fazer o máximo de exploração possível, o máximo de sidequests, pegando todos os Espers, etc. E foi lindo encontrar as diferenças no enredo do jogo geradas pelas diferentes versões do texto.
Daí por diante, observei que o Sandman procurou traduzir o texto em inglês com a maior precisão possível. Concluí que seu intuito era abrir as portas do jogo para quem não tinha fluência suficiente no inglês pra apreciar plenamente o jogo.
Já o Ted Woolsey, localizador oficial da Square, procurou adaptar o jogo para a cultura estadunidense, seguindo a cartilha da Nintendo of America, caso contrário, o jogo sequer seria licenciado para o Super NES. Daí vieram modificações no enredo, nas piadas, em nomes de personagens, nos sprites de mulheres peladas, na troca das plaquetas de BAR para PUB, etc. Concluí que a cartilha da NoA, que cumpria a função de viabilizar o lançamento do jogo em um ambiente avesso às culturas estrangeiras, "politicamente correto" e de certa forma puritano, prejudicou o processo de localização, que deveria consistir apenas na adaptação do jogo para que o jogador estadunidense pudesse ter a experiência de jogo o mais próxima possível do jogador japonês, ainda que jogando um jogo em inglês. Daí a segunda conclusão: a tradução de Ted Woolsey não pretendia ser precisa em relação ao texto original japonês.
Tudo parece óbvio, não? As coisas ficam interessantes quando observamos que quando Sandman usa a versão de Woolsey como a original, todas essas adaptações especialmente projetadas para um jogador/consumidor estadunidense previsto pela NoA são propagadas para o jogador previsto brasileiro! E mais, os jogadores brasileiros fluentes em inglês que desfrutaram o jogo localizado oficialmente, também receberam um produto que não foi localizado para ele. E mais ainda (rs)! O próprio jogador estadunidense enxergou as brechas no processo de localização, como por exemplo (algo bem bobinho) as garçonetes carregando canecões de chopp dentro dos cafés, e ficou cabreiro. O jogador estadunidense que teve contato com a versão japonesa e viu os sprites da Siren ou do/a Chadarnook ficou escandalizado com o puritanismo da localização: toda nudez foi castigada. Disso partiram iniciativas de retradução e deslocalização com resultados interessantes, inclusive a própria retradução oficial do jogo na versão lançada para GBA.
A minha reflexão teórica foi extremamente enriquecida por textos de teóricos como a Rosemary Arrojo, Lawrence Venuti e Antoine Berman.
Quem quiser saber onde fica a interface entre as observações empíricas e os Estudos da Tradução e/ou quiser saber mais, posso enviar o relatório final da pesquisa por e-mail, onde tudo está explicado e descrito com muito mais coerência e clareza.
Aproveito para convidar quem tiver interesse em saber mais sobre a minha pesquisa, a aparecer lá no estacionamento da Poli quarta-feira próxima (11/03/2015) à tarde, onde acontecerá uma mostra pública dos destaques do Siicusp 2014 na qual reapresentarei a pesquisa e ficarei disponível para conversar com quem aparecer no meu estande!
Comentei de passagem algum tempo atrás que fiz uma iniciação científica sobre a localização do Final Fantasy VI para os EUA, o original em japonês e as traduções feitas por fãs. Finalmente vou postar algo aqui.
Sempre tive vontade de estudar academicamente algo relacionado a videogame, e sempre admirei muito o trabalho das equipes ROMHackers de tradução, tanto pela generosidade quanto por abrir as portas especialmente dos RPGs japoneses que nunca foram traduzidos para o português, muitos sequer para o inglês, como é o caso do Rudra no Hihou que estamos jogando no Clube da Jogatina RPG (unicamente graças aos membros da equipe Aeon Genesis que traduziram e distribuíram o patch gratuitamente!). Daí calhou de eu estar trabalhando como tradutor e participando de um grupo de estudos de tradução de literatura japonesa, e caiu a ficha que era o momento.
A ideia no início era meio difusa, eu tinha em mente apenas que jamais havia cruzado com quaisquer menções a localização, nem a traduções de textos de jogos de videogame nos Estudos da Tradução e sentia falta disso, além de querer subsidiar e estudar de alguma maneira essas pessoas que tinham a minha admiração.
Finalmente, selecionei o Final Fantasy VI porque me lembrava de altas discussões, dos comentários sobre o Son of a Submariner, dos apagamentos culturais, etc.
Foi uma pesquisa muito prazeirosa, obviamente, mas bem trabalhosa. Algo que me deu muito trabalho foi coletar os scripts das três versões que resolvi comparar: Final Fantasy VI (em japonês), FFIII (em inglês) e a versão do Sandman para o português baseada na versão em inglês. Os dois primeiros scripts eu encontrei na internet, já o do Sandman, não encontrei.
Como eu queria fazer uma planilha com todas as falas dos "cenários" (as "animações"), com o texto de cada versão do corpus em uma coluna, precisaria dos três textos, então fui obrigado a extrair eu mesmo o texto em português do Sandman, cru, depois tive que limpar e organizar tudo na planilha. Um trabalhão.
A metodologia prevista era selecionar pontos polêmicos em termos de tradução, como o famoso "Son of a submariner" do Kefka, traduzir direto do japonês para o português, comparar com as versões do corpus e analisar. Infelizmente, minha ideia falhou porque eu não encontrei um grande número de polêmicas tradutórias como imaginava que encontraria facilmente na internet, então tive que mudar a estratégia.
Foi então que decidi de uma vez por todas montar a planilha até o fim e pinçar eu mesmo as polêmicas, da minha experiência de jogo. Diga-se de passagem, joguei as três versões simultaneamente, tentando fazer o máximo de exploração possível, o máximo de sidequests, pegando todos os Espers, etc. E foi lindo encontrar as diferenças no enredo do jogo geradas pelas diferentes versões do texto.
Daí por diante, observei que o Sandman procurou traduzir o texto em inglês com a maior precisão possível. Concluí que seu intuito era abrir as portas do jogo para quem não tinha fluência suficiente no inglês pra apreciar plenamente o jogo.
Já o Ted Woolsey, localizador oficial da Square, procurou adaptar o jogo para a cultura estadunidense, seguindo a cartilha da Nintendo of America, caso contrário, o jogo sequer seria licenciado para o Super NES. Daí vieram modificações no enredo, nas piadas, em nomes de personagens, nos sprites de mulheres peladas, na troca das plaquetas de BAR para PUB, etc. Concluí que a cartilha da NoA, que cumpria a função de viabilizar o lançamento do jogo em um ambiente avesso às culturas estrangeiras, "politicamente correto" e de certa forma puritano, prejudicou o processo de localização, que deveria consistir apenas na adaptação do jogo para que o jogador estadunidense pudesse ter a experiência de jogo o mais próxima possível do jogador japonês, ainda que jogando um jogo em inglês. Daí a segunda conclusão: a tradução de Ted Woolsey não pretendia ser precisa em relação ao texto original japonês.
Tudo parece óbvio, não? As coisas ficam interessantes quando observamos que quando Sandman usa a versão de Woolsey como a original, todas essas adaptações especialmente projetadas para um jogador/consumidor estadunidense previsto pela NoA são propagadas para o jogador previsto brasileiro! E mais, os jogadores brasileiros fluentes em inglês que desfrutaram o jogo localizado oficialmente, também receberam um produto que não foi localizado para ele. E mais ainda (rs)! O próprio jogador estadunidense enxergou as brechas no processo de localização, como por exemplo (algo bem bobinho) as garçonetes carregando canecões de chopp dentro dos cafés, e ficou cabreiro. O jogador estadunidense que teve contato com a versão japonesa e viu os sprites da Siren ou do/a Chadarnook ficou escandalizado com o puritanismo da localização: toda nudez foi castigada. Disso partiram iniciativas de retradução e deslocalização com resultados interessantes, inclusive a própria retradução oficial do jogo na versão lançada para GBA.
A minha reflexão teórica foi extremamente enriquecida por textos de teóricos como a Rosemary Arrojo, Lawrence Venuti e Antoine Berman.
Quem quiser saber onde fica a interface entre as observações empíricas e os Estudos da Tradução e/ou quiser saber mais, posso enviar o relatório final da pesquisa por e-mail, onde tudo está explicado e descrito com muito mais coerência e clareza.
Aproveito para convidar quem tiver interesse em saber mais sobre a minha pesquisa, a aparecer lá no estacionamento da Poli quarta-feira próxima (11/03/2015) à tarde, onde acontecerá uma mostra pública dos destaques do Siicusp 2014 na qual reapresentarei a pesquisa e ficarei disponível para conversar com quem aparecer no meu estande!